Sueli Saturnino de Barros, a Mãe
No início da manhã de segunda-feira, 19 de março de 2018, Sueli Saturnino de Barros, 41 anos, seguia da casa de seu único filho Cláudio Júnior, em São Lourenço, para o trabalho no comércio de ouro no centro do Recife. Na capital pernambucana, o dia era ensolarado e tudo parecia estar de acordo com a rotina, mas enquanto fazia o trajeto, Sueli se deparou com uma movimentação atípica em frente ao antigo Hotel Nassau, na Praça da Independência. O mesmo lugar onde décadas anteriores passou por todos os tipos de dificuldades quando morou duas vezes na rua, a primeira aos 12 anos e a segunda aos 16, carregando Júnior no braço, ainda com 17 dias de vida.
No meio da multidão, perguntou o que estava acontecendo, “é uma ocupação”, alguém respondeu. Sem pestanejar, pensou em entrar, apesar de nunca ter tido envolvimento com Movimento do Trabalhadores Sem Teto (MTST), que naquela madrugada havia concentrado cerca de 200 famílias para residir na Ocupação Marielle Franco. Quando se aproximou da entrada, foi avisada: não havia espaço suficiente para todos. Mas antes mesmo de pensar em desistir, palavra inexistente no vocabulário de Sueli, ouviu gritarem seu apelido pela janela, “mãe, ô mãe!”. Quem a chamava era sua amiga Jussara, que num piscar de olhos desceu as escadas, segurou no seu braço e conseguiu passar pela porta dizendo “ela é minha mãe”.
Hoje, Sueli é uma das coordenadoras da Ocupação Marielle Franco e sentada em sua cama com vista para a Praça da Independência, ou Praça do Diario, como é conhecida, sorri ao relembrar, “eu pensava que ia ser só chegar, entrar e pegar seu lugar, mas depois vi que não era bem assim. Existem regras e tarefas, mas nunca tive problemas com isso”. Dentro do seu quarto, ponto de encontro disputado entre as amigas, que a chamam o dia inteiro, fica fácil compreender o apelido. Sueli é mulher extrovertida que escuta e acolhe todos ao seu redor. Mas para ela, a palavra “mãe”carrega um significado diferente.
“A única lembrança boa que tenho da vida foi o dia que descobri que seria mãe. Quem me ergueu na vida, quem me fez pensar em levantar e lutar foi meu filho”, afirma.
Durante a infância, Sueli foi criada pela mãe e pelo padrasto em São Lourenço da Mata, onde nasceu, mas, ao ser questionada sobre o período, não consegue lembrar de muitos momentos positivos: “eu não sabia o que era brincar”, conta. Por causa da violência do seu irmão mais velho, responsável pelo sustento da casa, fugiu aos 12 anos. Sem rumo, caiu nas ruas do centro do Recife e cruzou os caminhos com seu primeiro companheiro, mais tarde, pai do seu filho. Cláudio trabalhava numa barraca de bebidas na Praça do Sebo e logo a chamou para viver na sua casa. Foram anos morando juntos, até o dia em que Sueli resolveu anunciar sua gravidez.
“Ele comprou remédios para me matar e quando eu recusei fui jogada escada abaixo. O bebê sobreviveu e eu aguentei mais 9 meses de agressões, somente até o dia em que pudesse pegar meu filho no colo e ir embora,
depois disso, eu disse que não seria mais sua mulher.”
Sem casa e com o filho recém-nascido no braço, foi buscar o amparo de sua mãe, que demonstrou o conservadorismo típico do interior com um ditado popular: “quem pariu e bateu que balance”. E foi exatamente assim, se balançando entre fome, medo e frio que Sueli voltou a dormir nas ruas do Recife. “A rua é uma escola, é onde filho chora e mãe não vê, você não dorme com medo da violência, com medo de alguém fazer alguma maldade. Eu não descansava, porque ficava olhando meu filho, tinha medo de perdê-lo”. Para sustentar Júnior, agarrava qualquer oportunidade. “Movi céu e terra pra ter meu filho do lado. Fui pra cozinha dos outros, fui pisada e humilhada, mas consegui criá-lo só. Hoje ele me respeita e agradece muito. O pai foi atrás dele depois de um tempo, mas ele disse ‘não, meu pai é a minha mãe, é quem sofreu pra me criar.”
Quando seu filho tinha quatro anos, a vida de Sueli balançou novamente. Em um dia comum, resolveu recolher o pouco que tinha para morar com um homem praticamente desconhecido. A razão não foi uma paixão repentina, mas o amor incondicional pelo filho. Até hoje, relembra com clareza o diálogo responsável por tirá-la da rua: “ele disse ‘você é uma mulher tão bonita, tá fazendo o que aqui?’, expliquei a situação e ele fez o convite, ‘você quer morar comigo?’, respondi ‘mas eu não gosto de você’ e ele disse ‘mas olhe pro seu filho’. E somente assim, olhando para o seu filho dia após dia, é que Sueli conseguiu viver seis longos anos de amargura.
Após a separação, conheceu Jorge, seu terceiro e atual companheiro, e decidiram morar na Bahia, onde até hoje alugam uma casa com muito esforço e dificuldades, que vão além do financeiro. Dentre elas, os problemas que a concentração e centralização urbana impõem. Por causa de um tratamento médico em Recife, ela precisou se mudar temporariamente para a casa do filho Júnior em São Lourenço da Mata. Ainda assim, a distância de cerca de 30km em uma cidade que não prioriza o transporte público, acabou pesando para Sueli, induzida a arranjar um emprego no Centro. Dentro desse contexto é que Mãe resolveu ocupar.
Atualmente, morando na Ocupação Marielle Franco, garante ter descoberto muito mais sobre ela mesma. Sem dúvidas, o convívio com outras mulheres de realidade parecida e a liberdade para tomar as rédeas da ocupação, permitiram que Sueli, em um momento raro de sua vida, olhasse para dentro de si.
“Sou uma mulher forte, guerreira e com muita coisa para viver. Sou uma mulher com direitos, em uma ocupação de mulheres que lutam pelos seus objetivos. Ninguém aqui tá pedindo favor para ninguém, a gente tá pedindo o que é nosso”.
Por Thaís Schio
Eliane Maria dos Santos
Sentada em sua cama, com a televisão ligada, Eliane Maria dos Santos, 43 anos, relembra da infância com detalhes e descreve o segundo lugar onde morou com a mãe, o padrasto e os irmãos, cenário das primeiras revoluções de uma criança criada com dificuldades no interior de Pernambuco, em São José do Egito. Na frente da casa, um pé de castanhola sombreava um banquinho, por trás, uma plantação dava vida aos legumes e subindo o terreno, havia um extenso canavial.
“Uma vez, quando tinha 11 anos de idade, vi um pessoal pedindo trabalho. Fiquei com tanta dó que levei um fósforo escondido e toquei fogo na cana pro pessoal cortar. Eu ainda não entendia que a cana precisava amadurecer, só entendia que o pessoa precisava trabalhar. Foi muito fogo mesmo. Fiquei escondida, porque os capangas foram atrás do culpado. Eu não contei pra ninguém e até hoje ninguém sabe quem foi. Mas o dono teve que contratar todo mundo imediatamente.”
Nessa época, a mãe havia buscado Eliane, ainda com sete anos de idade, na casa do pai, em Freixeiras, porque precisava de ajuda na criação dos outros filhos. Por ser a filha mais velha, era responsabilizada integralmente pelos cuidados com os mais novos e trabalhava tirando capim, caçando, ordenhando vaca ou qualquer outra coisa que surgisse para ajudar no sustento.
A menina não pôde brincar como uma criança sem preocupações, apenas nas poucas horas vagas, quando ainda morava com seu pai Emanuel Francisco. Dessa fase da vida, também lembra com minúcia. A casa, em que nasceu, tinha chão e piso feitos de tijolo
e ficava numa fazenda com as antigas estruturas de um engenho. O fazendeiro, patrão do seu pai, não era muito amistoso. “Lembro que não podia ligar o rádio. Era bem daquele tempo da escravidão mesmo, no lugar ainda tinha um porão, onde antigamente os escravos eram jogados lá para morrer.”
Mas apesar das circunstâncias, Eliane lembra do pai com carinho. “Meu pai foi um paizão, apesar de ter escolhido o trabalho ao invés da educação. Hoje em dia, eu entendo, ele tava sozinho com a gente (ela e mais três irmãos)”. Além disso, foi em uma das vivências com ele que a menina percebeu ser diferente. “Ele me levava para pescar, mas eu ficava triste quando pegava um peixe do sexo feminino, imaginava logo seus filhos e colocava de novo na água. Quando pegava ovos também. Via a galinha procurando por eles e aquilo me doía. Aí percebi que era diferente, não gostava de malvadeza.”
Anos depois, na casa da mãe Maria Madalena, as dificuldades iam além do trabalho. Seu sonho de estudar ficava cada vez mais longe. Para chegar na escola, a menina precisava se embrenhar no meio da mata, atravessando longas distâncias. Para evitar a fome, comia jaca verde, mamão verde, banana e aruá.
“A comida era escassa, lembro que comia pepino novinho. Não deixava nem o pepino crescer. Levava o sal escondido e comia tudinho”, relembra rindo.
A gota d'água para deixar a segunda casa foi a violência sofrida pelo padrasto. Eliane era agredida com tanta frequência que aos 12 anos fugiu de volta para Freixeiras.
Ao regressar, com ajuda da tia, conseguiu um emprego na casa de uma família rica do Recife. No bairro de Boa Viagem, viu o mar pela primeira vez, “quando eu vi, fiquei boba. Que rio tão grande, meu deus.” Não ficou muito, trabalhou como babá por 6 meses, e teve de recusar a proposta do empregador (um major) de ir junto com a família para Brasília, porque o pai não queria Eliane longe. Voltou para o interior, deixando o emprego e, outra vez, a promessa de estudar. Ainda assim, fez até a quarta série, mas nunca conseguiu acabar, porque era mãe dos seus irmãos.
Aos 13 anos, achou que a melhor solução era casar, então casou. Mas a relação não vingou, como tantas outras que vieram depois. Teve a primeira filha Taciana se virando praticamente sozinha. Eliane afirma só ter conhecido o amor da última vez que tentou, quando namorou Jailson. Um dia depois de ocuparem o imóvel, o rapaz precisou ser socorrido enquanto auxiliava Eliane na limpeza do prédio da Marielle Franco. Desamparado pelo sistema público de saúde, morreu no mesmo dia em que procurou ajuda.
“Ele só precisava de um balão de oxigênio, só isso”, relembra com pesar. Expulsa pelos seguranças do hospital, nunca mais tornou a vê-lo.
Antes, moravam juntos na comunidade de Pocotó, na Zona Sul de Recife. Em julho do ano passado, 12 famílias receberam uma notificação da prefeitura para desapropriação da área, que fica em cima do Túnel Augusto Lucena e ao lado do Viaduto Tancredo Neves, mas ninguém nunca explicou a razão. “Foram eles (o MTST) que foram na prefeitura e conseguiram embargar o pedido da desapropriação em três dias”, conta da ajuda que conseguiu do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST.
A solução que a prefeitura achou era o auxílio moradia. “Eu acho uma coisa horrorosa, porque onde é que com 200 reais você vai conseguir pagar um aluguel, água, luz? Aí eu vim morar aqui (Ocupação Marielle Franco), com mais três filhos.” Atualmente, está desempregada, mas, como coordenadora da Ocupação, passa o dia subindo e descendo as escadas, lidando com as inúmeras demandas. Ciente dos seus direitos, bate o pé para dizer:
“Só saio daqui se for para um palácio!”
Por Isabela Aguiar e Thaís Schio
Maria dos Prazeres da Silva
Nascida em Maceió, Maria dos Prazeres da Silva, 37 anos, tem a vida dividida entre Alagoas e Pernambuco. No lado de Alagoas, estão os dois filhos e uma neta que ainda não teve a oportunidade de conhecer, por causa da distância e do preço das passagens. No lado de Pernambuco, estão outros quatro filhos. O nascimento do caçula, João Victor, aconteceu em janeiro de 2017 e foi tão marcante que Maria nunca mais vai esquecer. É que quase junto com ele nascia a Ocupação Carolina de Jesus, localizada ao lado do Terminal Integrado de Passageiros do Barro. Quando deu à luz, Maria foi do hospital direto para a ocupação e chegou lá com o menino ainda no colo.
Na Carolina de Jesus, as tendinhas de lona espalhadas no terreno abrigavam centenas de famílias onde antes só havia mato e entulho. Uma vez, seu filho mais velho perguntou: “mãe, por que a gente tá morando em um barraco?” e ela tentou explicar “mainha tá desempregada, seu padrasto também... A gente vai vender água e pipoca no sinal”. Mas na verdade, Maria não teve muita alternativa quanto a mudança para a Ocupação, já que o canal em Jardim Brasil, onde morava, encheu enquanto ainda estava de resguardo pós-parto. Assim, a estrutura frágil do bairro e o aluguel muito caro, fizeram Maria ocupar pela primeira vez.
“Eu nunca pensei que fosse participar de uma ocupação”, relembra sentada no chão da cozinha da Marielle Franco, segunda experiência de Maria com processos dessa natureza e primeira ocupação vertical tocada pelo MTST no Brasil.
Hoje, na Marielle, ela é coordenadora e responsável por um dos seis andares do prédio ocupado. Entre suas funções estão a organização dos banheiros, da cozinha e das escadas. Ela se vê como uma mulher esforçada e pensa em algo simples quando se refere ao local que espera deixar para os filhos, “um teto para que possam descansar a cabeça e dormir sossegados, tendo um trabalho digno”.
“A ocupação tá me mostrando o que eu posso fazer e o que eu posso conquistar”, e põe em perspectiva o espírito de cooperação e empatia que dá vida àquele lugar, “depois que eu tiver meu teto, eu vou continuar na luta pelas pessoas que não têm e que precisam também de uma moradia digna pros próprios filhos”.
Por Isabela Aguiar